Guilherme Rey

April 8, 2024

Ruído 🗑️


Por eu sempre ter tido um pouco mais de facilidade com as matérias de exatas na escola, minhas experiências nas aulas de português eram um pouco mais complicadas. Eu precisava ter o dobro de esforço pra entender algumas coisas mais a fundo, como quando precisava interpretar poemas e obras literárias clássicas. Apesar da dificuldade um pouco mais elevada, eu gostava muito de uma parte em específico da grade do colegial: os treinos para aprendemos sobre dissertações. Me lembro que a professora dividia a sala em dois grupos e então falava sobre como tínhamos que defender qualquer assunto, sendo a favor ou contra. A ideia era identificar alguns macro grupos e tentar trazer assuntos que pudessem virar argumentos sólidos ali dentro. Economia ou política, por exemplo. Como o assunto em questão se relacionava nesses grupos e quais relações lógicas poderiam ser estabelecidas a fim de criar um argumento que fizesse o outro grupo não conseguir responder?

A verdade é que até hoje eu gosto de debates e tento entender como fazer para ficar melhor na arte da retórica Aristotélica - principalmente no logos, o princípio persuasivo que consiste no uso de raciocínio lógico para criar argumentos válidos e consistentes, bons para os tornar muito convincentes. Para criar tais argumentos é preciso utilizar bastante informação prévia, estar embasado e saber sobre os assuntos que são contexto do debate. O problema é que a cada dia que passa isso fica mais difícil de se fazer. 

Um relatório feito por uma empresa de pesquisas (GWI) diz que “Mais de 6 em cada 10 dos 5,35 bilhões de usuários de internet do mundo vão online para encontrar informações, mas nossas atividades online na verdade se tornaram mais variadas ao longo do último ano. A interação social também é um grande motivo para usar a internet, mas o conteúdo de notícias está perdendo espaço para o conteúdo de entretenimento.”. Com a era da informação foi possível ter toda e qualquer informação disponível na palma de nossas mãos, mas, ao mesmo tempo, temos sido engolidos pela quantidade massiva de criação de conteúdo nas redes sociais. Atualmente, em apenas um minuto do dia, 3,4 milhões de videos são assistidos no YouTube, 625 milhões de videos são assistidos no TikTok, 452 mil horas de conteúdo são distribuídas na Netflix e 66 mil fotos e videos são compartilhados no Instagram. Imagine o quanto dessa informação, que é gerada diariamente na internet, é, de fato, de qualidade? Para podemos criar nossos argumentos, precisamos conseguir nadar pelo oceano de dados da internet e conseguir evitar todos os ruídos possíveis, e essa tarefa não é nada fácil. Recentemente eu mesmo acabei caindo em um ruído que por sorte descobri um pouco mais sobre. 

Você deve ter ouvido a notícia sobre a Amazon ter decidido acabar com sua frente “Amazon Just Walk Out”, as famosas lojas sem caixas. Para você que não conhece, a ideia é simples: você entra em um mercado, passa seu cartão de crédito, pega o quiser das prateleiras e vai pra casa. Depois, magicamente você recebe um recibo do que comprou e a compra é registrada no seu cartão. Incrível, certo? Quase como mágica.

O problema é que junto com a manchete sobre a desistência da empresa nessa frente, outra sobre a tecnologia utilizada nessas lojas apareceu. Segundo as manchetes, na verdade eles estariam utilizando cerca de mil indianos para verificar vídeos e então garantir que os itens fossem marcados e registrados corretamente, e não uma inteligência artificial propriamente dita. Eu cometi um erro e fui pego pelas manchetes e por alguns tweets (ainda podemos chamar as postagens do X de tweets? #SddTwitter), ficando chocado com essa notícia. Em seguida já recebi alguns memes sobre como você poderia contratar indianos diretamente no painel da AWS (nuvem da Amazon), mostrando que não era só eu que tinha caído nas manchetes. Como pensei em escrever sobre isso, com outra intenção, resolvi dar um mergulho um pouco mais fundo nessas notícias.

A verdade é que a informação sobre os indianos foi trazida pelo site The Information, em maio de 2023 (quase um ano atrás). Na reportagem o autor traz a informação e explica que a Amazon utiliza o serviço das pessoas como “Machine Learning Data Associates”, ou seja, realizam anotações de videos e validam compras manualmente, para ajudar no aprendizado do modelo que eles criaram. Aparentemente a diminuição da necessidade de revisões manuais não estava progredindo como eles gostariam, e junto com outros fatores importantes, resolveram desistir dessa frente. Mas o mais curioso é que quando eles noticiaram essa desistência, algumas pessoas chegaram na publicação do ano passado e então começaram a divulgar que a tecnologia não existia, e que eram indianos fazendo tudo nos bastidores. O portal fez uma publicação sobre este fato, mostrando que isso escalou muito rápido: desde um tweet de um democrata americano, até um grupo de comunicação de extrema-direita com a manchete “Os espiões da Amazon estão olhando você comprar comida”.

Para que eu chegasse na conclusão de que eu acabei caindo em uma manchete sensacionalista, eu precisei ler as reportagens em sites brasileiros; buscar o artigo original no The Information, sobre a desistência; ler o artigo do ano passado sobre a tecnologia e a aposta da Amazon no Just Walk Out; e, por fim, ler a publicação sobre como as manchetes na mídia estavam escalando, pela própria The Information. Não é algo trivial. Além da barreira do idioma, eu só fui atrás porque tinha decidido escrever sobre o assunto.

Essa minha experiência é só um pequeno exemplo de como ruídos podem impactar as informações que usamos como base dos nossos argumentos. Isso é importante para nossa convivência em sociedade e até para decisões de negócio. Toda informação tem que ser separada dos ruídos, para que possamos ter base de qualidade na criação de toda lógica que possa convencer um debatedor ou, quem sabe, um grupo de diretores a tomar alguma decisão.
Evitar ruídos não é fácil, mas é necessário.


Até a próxima!

About Guilherme Rey

Empreendedor, Professor e Cientista da Computação. Gosta de falar sobre tecnologia, pessoas e negócios.