Paulo Pinto

March 12, 2021

A CONSTRUÇÃO ILUSÓRIA DO “EU”*

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“Be Your Self” desconstrói e provoca. O corpo, como matéria-prima enformada e funcional, postula uma análise que dê resposta às inquietações que assolam a nossa construção identitária. Garry Stewart interroga-nos: o que há de construído no “Eu” e quão ilusória é a sua imagem? Poderão as emoções residir no estritamente mental? Fará sentido pensarmos a mente, o espírito e o corpo como entidades separadas, quando a corporeidade é um sinal evidente do que sentimos e de como sentimos? O que é o “Eu”? Estas são algumas das perguntas que nos farão refletir ao longo de uma performance que faz da relação entre a mente e a expressão corporal o seu leitmotiv. ¶


Nas fronteiras da Dança Contemporânea, a Australian Dance Theatre convoca-nos para uma experiência deslumbrante que reclama atenção. “Be Your Self” não é um apelo óbvio à capacidade descodificadora do seu público e, por esse motivo, converte-se num desafio estimulante que requer uma grande capacidade reflexiva. O real e o exploratório conjugam-se numa festa visual à qual não é alheia a paixão de Stewart pelo filme e o multimédia. Na indefinição de género, somos levados por caminhos que diluem a imutabilidade presente na nossa conceção de movimento, sentimentos e expressões. Existirá algo de manipulador no corpo humano que nos conduz de uma forma inexorável? ¶

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Inspirado pelo pensamento da filosofia oriental acerca da individualidade, Stewart provoca-nos com questões inesperadas. O corpo é fonte de perceções e simultaneamente matriz que alimenta a construção mental e consciente de uma narrativa linear do “Eu”. Somos uma construção idiossincrática, pois nada existe no nosso interior que nos legitime ontologicamente. A consciência é vista como um qualquer outro sistema corporal, libertando o corpo das suas limitações estruturais. É neste monismo que somos conduzidos através de uma dança exata que se alimenta da contração muscular, do movimento dos tendões e do ranger dos ossos, numa demonstração de simplicidade que desafia constantemente o limite. A fixidade do olhar, o grito que se desprende, o ascetismo da indumentária são elementos que se cruzam no esoterismo da função. ¶

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Garry Stewart define a obra como uma “expressão artística sobre o corpo humano” que não prescinde da dimensão estético-visual como epíteto. Há um compromisso assumido entre a obtusidade da proposta e a sua acessibilidade estética. Contudo, “Be Your Self” não faz a apologia do Belo, pois na dança os estereótipos de beleza ditam a sua estagnação. ¶


“Be Your Self” situa-se para além do óbvio, abraçando um território criativo e estimulante.

(*) Texto escrito para o jornal do GUIDANCE - Festival de Dança Contemporânea de Guimarães